sábado, 13 de junho de 2009

MUSEU A CÉU ABERTO: uma nova concepção do expor





Por Flávio Fernandes Vasco

Giulio Carlo Argan menciona em seu livro “A história da arte como história da cidade” as palavras de Lewis Mumford: “A cidade favorece a arte, é a própria arte”, ou seja, ela não é apenas um invólucro ou concentração de produtos artísticos, mas uma obra de arte por si mesma. A cidade real, “reflete as dificuldades do fazer a arte, ao mesmo tempo em que reflete também as circunstâncias contraditórias em que ela se faz.” As diferentes formas de arte constituem um sistema em que, todas juntas, tornam a cidade o campo de concentração cultural onde tudo se tenta, tudo se faz. Neste contexto, a cidade entra como palco, cenário e platéia da manifestação artística.
No mesmo livro, Argan já vinha identificando uma nova diretriz para a arte (ou crise, como ele denomina) que hoje se torna mais claro que nunca, em que os produtos das artes se inserem num contexto cultural contemporâneo dominado pela ciência e pela tecnologia a ponto de terem de ser sustentados por uma ciência da arte, que na realidade é o que se tornou a história da arte. Assim, observa-se que a fruição da arte, até então imediata, torna-se mediada de maneira científica pelas teorias acadêmicas, criando uma dificuldade objetiva de inserção de uma cultura essencialmente artística com o meio científico e tecnológico estabelecido. A inquietação de Argan reside nas perdas relevantes e talvez irremediáveis que tal situação poderia acarretar naquilo que chamamos patrimônio artístico.
Por outro lado, enquanto a arte assim se desenrola, um grande contingente de “desenhistas”, “ilustradores” e “grafiteiros” produzem silenciosamente sua arte, sensível e intrinsecamente ligada ao contexto urbano, com espontaneidade muito mais próxima da pintura mural (uma das mais antigas formas de expressão artística) do que das artes acadêmicas. Desenvolvem-se de modo relativamente independente desta e mantém ainda um pouco do imediatismo perdido por ela. A idéia passa pela discussão em curso sobre as possibilidades e distorções a que a arte urbana é submetida quando da sua transposição para o espaço de uma galeria por um lado e por outro, de sua possibilidade de permanência no contexto urbano através das suas inúmeras formas de expressão e representação.
Longe de chegar a conclusões concretas sobre a arte urbana, a discussão que aqui se levanta é em relação às diversas formas de manifestações consideradas artísticas, que são fruto de experiência, vivência e necessidade de expressão. Algo parece fazer sentido quando projetamos nossos olhares aos diversos elementos constituintes da cidade. Há expressões diversas nos muros, nos prédios, nas ruas, nas praças, nos pontos de ônibus, nos letreiros, nos outdoors, entre outros, além dos valores imateriais como a música, a cênica e a dança, também percebidos na imagem da cidade. Citando Michael Foucault:
“O espaço em que vivemos, que nos tira de nós mesmos, em que a erosão de nossas vidas, de nosso tempo e de nossa história ocorre, o espaço que nos roe e nos arranha, é também, um espaço heterogêneo. Em outras palavras, nós não vivemos em uma espécie de vazio, dentro do qual nós podemos colocar indivíduos e coisas. Nós não vivemos dentro de um vazio que pode ser colorido com diversos tons de luzes, nós vivemos dentro de um conjunto de relações que delineiam lugares que são irredutíveis a um outro e absolutamente não superponíveis sobre um outro.”
Considerando as idéias explicitadas, vamos inserir neste contexto o Museu a Céu Aberto, da Praça Universitária, localizada no Setor Universitário em Goiânia. A Praça Universitária é um ponto histórico, inclusive tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Goiás, e palco de grandes manifestações políticas, culturais e eventos estudantis. Para boa parte dos universitários de hoje e ontem, a Praça se confunde com suas próprias histórias de vida. É, por isso, um significativo lugar de memória da cidade.
Em 2000, através de uma iniciativa pioneira da Prefeitura Municipal, nos jardins da Praça Universitária foi instalado o Museu a Céu Aberto, que disponibiliza e democratiza obras de arte de escultores goianos para visitação pública, fato este que valorizou e embelezou a praça. O museu é, contudo, um espaço aberto delimitado pelos contornos da Praça. Ele avança pelas vias, integrando os elementos. O Museu foi desenvolvido dentro do conceito de participação, criação e interação-didática, inserido em um contexto Arte-Natureza-Vida, junto à população de Goiânia, como sinônimo de cultura e cidadania. Foi projetado para 26 esculturas e 2 painéis. Cada artista elaborou sua obra nas técnicas desejadas, pela plasticidade do bronze, do alumínio, do aço, do ferro, da pedra sabão, da madeira e da cerâmica, influenciados por vários estilos adotados ao longo da história da arte, sendo que esses estilos vão se alternando do abstrato ao figurativo, das maiores para as menores, no patamar mais baixo da praça, em sentido horário.
O grande feito desta iniciativa está justamente na quebra conceitual da idéia de museu. O museu sempre foi referência para um certo “acomodamento” da produção, que se propõe específica para os espaços de museus; ou ainda para a “adequação” mútua de museus e obras para a inclusão daquelas que não foram realizadas para figurar em suas salas. Há de quebrar estes paradigmas. O fato que ocorre é que os museus não são “depósitos do passado”. O conceito de museu hoje é de centro dinâmico de difusão cultural, poderoso instrumento de transmissão de conhecimento e formação de consciência, cujo papel primordial é sócio-cultural-educativo, para ir ao encontro às necessidades do público.
Dentro desta perspectiva, podemos compreender o Museu a Céu Aberto como um elemento de aproximação da população em relação às artes – rompendo, literalmente as paredes do museu – e tendo como proposta desafiadora comunicar-se com a sociedade através das artes no espaço público.
Voltando a Lewis Mumford sobre o processo da cidade no favorecimento da arte e a própria cidade como arte, há ainda de se dizer que a cidade como instituição dinâmica reflete as constantes aspirações e manifestações de sua população. São muitas as formas de expressão e representação a serem apreendidas e consideradas, em que a cidade configura neste contexto, ora como palco, ora cenário e ora platéia. Assim, a cidade é referência na concepção artística, afinal cabe a ela o papel sustentador do cotidiano.
Para finalizar, vale a citação do filósofo Umberto Eco ao entender que as obras de arte são obras abertas no sentido de não comportarem apenas uma interpretação. Assim, as expressões artísticas existem a partir da intenção de seu autor, mas é apropriada pelo intérprete conforme seus desejos. Tal fato ocorre pelo caráter multifacetado das artes, que não fecham conteúdos. Abrem-se novas possibilidades de interpretação e compreensão do mundo, justamente por despertar esse sentimento de descentralização e pluralidade. Podemos inserir a própria cidade no conceito de obra aberta.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade
FOUCAULT, Michel. Of Other Spaces, in Mirzoeff, Nicholas (ed.) Visual Culture Reader, London, Routledge, 1998, p. 239
Site oficial da Prefeitura de Goiânia: www.goiania.go.gov.br

Um comentário:

  1. Com o museu aberto a visibilidade das obras pelas pessoas que ali passam é enorme.
    Muito legal seu texto.

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